Osesp
John Neschling regente
Gravado em agosto de 2006 na Sala São Paulo
Lançado em CD pelo selo Biscoito Fino
Mili Aleksêievitch Balakirev (1837-1910) é um compositor cujo nome é bem mais conhecido do que sua música. Se, de suas composições, hoje em dia, apenas a fantasia oriental Islamey aparece de quando em vez em recitais pianísticos, ele teve uma inegável importância como organizador e agitador da vida musical russa na segunda metade do século XIX, sendo identificado como o ‘cabeça’ do chamado Grupo dos Cinco (em russo, Mogútchaia Kútchka, ou Grupo Poderoso).
Foi o crítico Vladimir Stassov quem, em 1867, deu essa designação aos compositores que se aglutinavam em torno de Balakirev, e que, seguindo os passos de Glinka e Dargomijski, buscava uma maneira especificamente russa de fazer música, oposta a tendências “europeizantes” (para alguns, o conflito também pode ser visto como um embate entre o “radicalismo” dos Cinco versus o “academicismo” de seus opositores).
Faziam parte do grupo, radicado em São Petersburgo, Borodin, César Cui, Mussorgski e Rimski-Kórsakov, mas jamais Tchaikovsky. Pelo contrário: aluno de Nikolai Zaremba e Anton Rubinstein, “ocidentalizantes” aficionados da escola germânica, Tchaikovsky foi alvo de ataques dos Cinco –sua cantata de formatura, por exemplo, recebeu de Cui uma crítica severa.
A onda começou a virar, vagarosamente, em 1867, quando, em radical mudança de orientação, a direção dos concertos da Sociedade Musical Russa passou de Rubinstein (que então se aposentava) para Balakirev. Tchaikovsky foi forçado a se aproximar deste último para ter suas obras executadas; foi bastante ajudado por Balakirev, e passou a ter relações cordiais com os Cinco, embora, morando em Moscou, se mantivesse razoavelmente distante –e, conseqüentemente, independente- do grupo.
Na verdade, embora os conselhos e o apoio de Balakirev fossem de enorme utilidade para o compositor, Tchaikovsky rapidamente passou a se cansar da onipresença do novo mentor: “é um bom homem, e muito gentil comigo, mas por alguma razão nunca me sinto à vontade em sua companhia”, escreveu. “É a estreiteza de suas opiniões musicais e a persistência com que se agarra a elas que acho especialmente irritante”.
Pois, ironicamente, foi na mesma época em que se queixava da “irritante” persistência de seu mentor que Tchaikovsky resolveu acatar uma sugestão dele: a de compor uma abertura baseada no Romeu e Julieta de Shakespeare.
A idéia apareceu em agosto de 1869, momento pouco propício, já que o compositor se debatia com um projeto fadado ao fracasso: uma ópera chamada Ondina, que seria rejeitada pelos Teatros Imperiais (Tchaikovsky, tipicamente, reagiu destruindo a partitura, mas, depois, resolveu reciclar parte da música da Ondina em criações como A Donzela da Neve, a Sinfonia n° 2 e O Lago dos Cisnes).
“Estou completamente esgotado”, diz carta sua a Balakirev. “Não quero escrever até que tenha esboçado pelo menos alguma coisa, mas minha mente está completamente privada de pensamentos musicais que sejam ao menos toleráveis. Começo a temer que minha Musa tenha fugido. Talvez tenha ido visitar Zaremba!”
A resposta de Balakirev não tardou muito: uma longa missiva com um plano detalhado para a obra. O colega mais velho, que já havia tomado Shakespeare como inspiração de uma de suas obras (Rei Lear), não se fez de rogado: indicou algumas modulações, e até chegou a escrever como seriam os quatro primeiros compassos de Romeu e Julieta, caso fosse ele a compor a peça.
O final da carta é um pouco mais paternal do que seria de se esperar (afinal de contas, a diferença de idade entre eles era de apenas três anos): “agora, calce suas galochas, pegue a bengala e vá dar um passeio pelas avenidas, começando pela Nikitski. Depois, mergulhe em seu plano musical e estou certo de que, quando chegar ao Bulevar Sretenski, algum tema ou episódio já terá se apresentado”.
A estréia, em Moscou, em 1870, com regência de Nikolai Rubinstein (irmão de Anton) não obteve êxito; ao que parece, o concerto na época atraíra enorme atração por razões extra-musicais. Nikolai havia perdido uma disputa judicial com uma aluna do Conservatório de Moscou na véspera, e uma claque organizou uma ruidosa manifestação em seu favor no dia da apresentação.
Tchaikovsky se lembra muito bem do que aconteceu: “depois do concerto, nós jantamos”, escreveu. Aparentemente, todo mundo só queria saber do “escândalo” em torno de Rubinstein. “Durante a noite inteira, ninguém me disse uma palavra sobre a abertura. E eu precisava tanto de apreciação e bondade”.
Sorte bastante distinta, contudo, teve a primeira apresentação em São Petersburgo. César Cui se derramou em elogios, e Stassov previu uma ampliação do grupo, dizendo a Balakirev: “vocês eram cinco, e agora são seis”.
O mentor de Romeu e Julieta, contudo, ainda tinha muitas restrições à partitura, e pediu várias modificações. Seguindo as sugestões de Balakirev, Tchaikovsky empreendeu uma grande revisão da obra, logo naquele verão. Dez anos depois, em 1880, o compositor modificaria o final de Romeu e Julieta, e a partitura finalmente ganharia seus contornos atuais.
Musicalmente, embora tenha sido chamada de Fantasia-Abertura por seu autor, Romeu e Julieta poderia ser classificada de um poema sinfônico em forma-sonata, com uma introdução e um epílogo. Em vez de tentar descrever toda a ação da peça de Shakespeare, a música se concentra em três pontos centrais da trama: o primeiro é Frei Lourenço, que, aqui, ganha acentos que o aproximam da Igreja Ortodoxa Russa; o segundo é a rivalidade entre os Capuletos e os Montéquios, com música agitada que evoca os confrontos entre as famílias rivais de Verona; e o terceiro é o tema de amor, uma das melodias mais arrebatadas e famosas de Tchaikovsky.
Irineu Franco Perpetuo é jornalista, colaborador do jornal Folha de S.Paulo, rádio Cultura FM, TV Cultura e revistas Bravo! e Concerto, e correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona)